“Todavia, aqueles que possuírem calor interno em excesso vão preferir abster-se da sociedade para evitar receber — ou causar — transtornos ou inconveniências.”
— Arthur Schopenhauer, “Parerga e Paralipomena”
A primeira vez em que eu ouvi falar sobre o “dilema do ouriço” foi assistindo Neon Genesis Evangelion. E eu demorei demais pra assistir isso, aliás. Só de pensar que essa obra de arte saiu meros três anos depois que eu nasci, e mesmo assim eu só fui assistir em 2020 por conta da quarentena…
De qualquer maneira, não é meu intuito focar apenas no episódio do anime aqui. Afinal, não foi Evangelion que criou o conceito, e sim Arthur Schopenhauer, em sua obra “Parerga e Paralipomena”. A ideia é básica: nos é apresentada uma situação hipotética em que, durante um inverno rigoroso, ouriços precisam se amontoar para sobreviver por meio do compartilhamento de calor interno. O problema começa quando lembramos que o ouriço é um animal coberto por “espinhos” (simplificando); com o tempo, os ouriços amontoados começam a sentir os espinhos dos demais lhes perfurando.
Os ouriços, então, se afastam, afinal a dor de uma picada de ouriço não é brincadeira. Mas, como vocês já devem ter percebido, o problema original do frio retorna. E assim, os mamíferos se inserem em um ciclo vicioso, ricocheteando de um problema a outro. Schopenhauer, então, aplica o dilema à sociedade: o ser humano como animal político, segundo ele, é pré-programado para se unir a outros humanos e preencher a sua existência monótona; porém, conforme se aproxima, percebe que humanos possuem características, vícios e falhas repulsivas, e deles se afasta. Assim, o ciclo de aproximação e afastamento se repete.
A “solução” encontrada para o problema, a dita “distância ideal” para convivência e tolerância entre as pessoas segundo o autor, seria a educação e os bons modos. Todo aquele que for incapaz de seguir esse protocolo deve se manter distante. A concessão que se faz aqui, infelizmente, não resolve totalmente o problema; a dor dos “espinhos” não é tão intensa, mas o “inverno”, o vazio existencial, também não é totalmente bloqueado. Além disso, e é aqui que Schopenhauer larga uma bomba, o mecanismo desse problema efetivamente força qualquer pessoa que tenha uma quantidade alta de “calor humano” a buscar isolamento da sociedade. Claro, afinal de contas esta pessoa terá muito mais oportunidades de causar ou sentir dor.
“Por mais que o ouriço queira se aproximar de outro ouriço, quanto mais se aproxima, mais os dois se machucam com seus espinhos. O mesmo vale para humanos. A razão pela qual ele [Shinji Ikari] parece tão retraído vem do medo de se machucar.”
— Ritsuko Akagi, “Neon Genesis Evangelion”
A existência humana é solitária por padrão. Somente com outros por perto podemos obter propósito, satisfação, e até mesmo um escape. Isso é o básico. O que ocorre é que vivemos em um contexto onde 1) as redes sociais nos mantém conectados o tempo todo, e colocam todos os eventos ao nosso redor borbulhando debaixo do mesmo microscópio; e 2) níveis de ansiedade e depressão se encontram altíssimos em gerações que ou acabaram de entrar na vida adulta, ou estão nos seus anos formativos.
A ideia de que os ouriços precisam, agora, aprender o distanciamento em um nível presencial e em um nível online é assustadora. Não à toa cria-se uma necessidade em tantos — eu incluso — de autoinsulação, de medos e ansiedades relacionados à expressão. O único jeito de sobreviver aparenta ser, em alguns dados momentos, simplesmente não se expressar de forma alguma… Ou de romper com os padrões de “educação e bons modos” propostos por Schopenhauer, já que a dor parece ser inevitável e infindável demais para nos importarmos.
Quão perto é perto demais? Minhas cicatrizes falam por mim quando o assunto é os espinhos dos outros ouriços que me perfuraram. Certamente haverá quem tenha cicatrizes deixadas por mim também. Relacionamentos são igualmente divididos em atenção, carinho e respeito versus concessões, tolerância e espaço. Mesmo as pessoas mais compatíveis, quando tomadas por si só, podem ter relacionamentos catastróficos se as concessões que cada um se propõe a fazer não são compatíveis. Então, como saber qual é a distância certa?
A maneira como me comporto é digna? O que pensam de mim quando vêem meus stories? Seria ingênuo simplesmente pensar que “a opinião dos outros não importa”; afinal, não existimos em um vácuo! Preciso que outros ouriços me aqueçam nesse inverno. Mas o afastamento é inevitável. Sofri bastante, e doeu. A confusão nasce no momento em que, em um nível presencial, a vontade maior é de ficar no inverno e não se machucar, porém em um nível “online”, a vontade maior é de ser aquecido. Os dois travam um duelo sem vencedores na consciência, e assim, explosões, surtos e comportamentos erráticos ficam escancarados nas redes para que todos vejam.
Se o texto parecer estranho, me avisem. Ele começou com um tom quase jornalístico, e agora parece um desabafo. Mas isso é resultado de um distanciamento meu também; ao longo dos anos, me convenci de que não vale a pena escrever sobre mim mesmo, e é melhor que eu escreva sobre assuntos relevantes em terceira pessoa. É mais “útil” para a sociedade. Me foi passada a impressão de que falar de mim e das minhas experiências é desinteressante, inútil, e egoísta, afinal não estamos com falta de assuntos sérios neste ano de 2020. Mas, de alguma forma, senti uma obrigação quase moral de me retratar na primeira pessoa dessa vez; afinal, eu escrevia muito mais antigamente, e esse medo de parecer egoísta, esse distanciamento do meu “eu” e da minha escrita assassinaram meu talento para escrever. Então, ignorando todas as vozes imaginárias na minha cabeça dizendo pra eu calar a boca e falar dos protestos, do governo ou de qualquer coisa que não seja meus problemas, aqui estou.
De certa forma, fui de um extremo a outro. Como no dilema. E se alguém esperava que esse texto fosse terminar com uma solução universal para o dilema do ouriço, um meio de manter-se apropriadamente aquecido sem machucar tanto a ponto de se tornar insuportável, sinto desapontar. Se nem Schopenhauer descobriu, imagina eu. Eu recomendo assistir Evangelion, pelo menos: a mensagem no final responde um pouco essa questão.
O que dá pra dizer é que, em tempos de quarentena, acho que todos nós estamos percebendo o quanto precisamos das pessoas. Até o mais “misantropo” (eu, particularmente, não acredito muito em misantropia) entre nós não deve estar achando o máximo sequer poder subir a rua até o mercado. Ao mesmo tempo, o distanciamento nos livra dos ruídos e gatilhos causados em alguns de nós pelo convívio social, e nos permite introspecção e reflexão livre de interferências. Especialmente introvertidos com ansiedade social, como eu. Não é coincidência que, numa época onde estamos todos trancafiados em casa, minha psicóloga demonstrou espanto no avanço positivo do meu quadro mental — ou que outros amigos meus relataram esse mesmo fenômeno nas suas respectivas terapias.
Então, sim, vocês já sabem o que eu vou dizer. Até a quarentena serve de exemplo pra esse dilema infernal.
Uma coisa eu sei: eu devo ser um ouriço desgraçado de grande, porque eventualmente os outros ouriços sempre vão embora.