Chris O’Meara (AP)

Sidão

Victor C
6 min readMay 13, 2019

Estamos no início dos anos 2000, na capital paulistana. Sidney, um jovem de 17, 18 anos, goleiro das categorias de base do Corinthians, recebe a notícia de que sua mãe, Vera Lucia, não está mais neste plano. Ascendeu, se mudando daqui para os céus.

O jovem arqueiro não se aguenta. Tendo sido um frequentador assíduo das noites de São Paulo, gastando todo o seu dinheiro em bebidas, farra e perdição, Sidney sentia que carregava a culpa pela partida da mãe. “Você só me dá dor de cabeça”, ela dizia a ele. Sidney saía para a noite na sexta, e só voltava no domingo para os braços da preocupada mãe. E, ironicamente, após um surto de dores de cabeça, ela veio a falecer.

Sidney dizia ser o responsável. Dizia que vivia uma vida errada, e que Vera Lucia teria morrido de desgosto. De estresse. “Carreguei esse sentimento de culpa e, para mim, o certo era eu morrer também, diz o filho.

Sidney agradece até hoje por não ter tido coragem — desejo não faltou — de tirar sua própria vida. Mas enfrentou profunda depressão, e esteve acompanhado apenas de destilados e cervejas durante boa parte dela.

Estamos em 12 de Maio de 2019, domingo de Dia das Mães. Vasco e Santos se enfrentam pela quarta rodada do Campeonato Brasileiro, e o Vasco perde de 3x0 com atuação falha do goleiro Sidão, inclusive participando ativamente do primeiro gol dos adversários.

A Rede Globo de Televisão inicia, durante a transmissão, o prêmio “Craque do Jogo”, onde internautas votam no percorrer da partida para decidir quem foi o melhor em campo. Mesmo com o fracasso absoluto desta ferramenta — em praticamente 90% das vezes, foram escolhidos atletas “folclóricos”, pelo mau rendimento, ou por nomes cacofônicos como o do tcheco Ondrej Kudela — mais uma vez a emissora insistiu na gracinha.

A postagem, agora apagada, do perfil Desimpedidos incentivando o público a votar em Sidão

Naturalmente, a palhaçada se repetiu. Com 90% dos votos, Sidão, em atuação terrível, foi votado como o “Craque do Jogo”. O perfil do Twitter da comunidade humorística Desimpedidos, que incentivou a votação, apagou a postagem* logo após o jogo. A Globo, não satisfeita em persistir no uso da sua inútil prática, ainda achou por bem entregar a Sidão um troféu simbolizando, fisicamente, a chacota que sofreu no dia.

Mesmo com equipe de edição e repórteres sendo abertamente contra a atitude, Sidão recebeu o presente após o jogo e, visivelmente constrangido, deu algumas pequenas palavras e saiu.

Nas costas de sua camiseta, onde normalmente se leria seu nome, estava o nome de sua falecida mãe, Vera Lucia, e os dizeres “Amor Infinito”, como homenagem de Dia das Mães.

Depois do jogo, em uma coletiva, Sidão afirmou que o dia em questão foi “um dos piores dias de sua vida”.

Reprodução/SporTV

Estamos, agora, na internet. De onde nasceu a chacota com Sidão, agora, afloram manifestações de solidariedade para com o arqueiro e indignação com a Globo, que não deixou uma piada de internet permanecer na internet. Foi atrás e personificou, deu forma física e tangível ao problema e colocou-o no colo de Sidão.

Ainda assim, a maioria das respostas a essas manifestações de apoio não foram positivas — majoritariamente vindo de vascaínos, ensandecidos com o que provavelmente foi uma das piores perfomances coletivas do time no ano. “No lugar dele, ganhando o que eu ganho, eu aguentava!”, “Coitado de MIM que tenho que aguentar ele no gol!”, “Ele ganha milhões, tá triste com o que?!”, “Tá com pena, leva pro teu time!”, dentre outras respostas, demonstram mais uma vez a faceta suja e cruel do futebol. O mesmo esporte que, numa mão, inclui o oprimido, levanta o excluído, une povos e termina guerras, na outra mão, é o maior antro de racistas, homofóbicos, sexistas e assassinos de todo o âmbito esportivo.

Para cada um passo que a sociedade moderna dá em direção a um mundo mais compreensivo, mais aceitável e mais respeitoso da saúde mental alheia, ela dá dois para trás em seguida. “Saúde mental só importa com quem eu gosto, e do conforto do meu sofá, eu penso que faria melhor”. De nada importa o ser humano. Importa o resultado em campo. Aqueles que ganham dinheiro, mesmo que seja em uma profissão de carreira curta, não têm o direito de se levantarem contra seus demônios externos… mas com certeza choraram por Robin Williams, Chester Bennington e outros ricos/famosos que cometeram suicídio em silêncio. Me pergunto como teriam reagido se qualquer uma dessas pessoas fosse, ao invés de ator, cantor, ou performer, o goleiro do time deles. A empatia seria outra.

Flickr/Grêmio Osasco Audax

Antes de reaparecer para o mundo do esporte como goleiro reserva, depois reposição, e depois titular do sensacional Grêmio Osasco Audax vice-campeão paulista em 2016, Sidão viveu dias difíceis. Até 2005, era atleta profissional, mas não ganhava nem perto do suficiente para ter uma vida tranquila solteiro, que dirá quando pretendia se casar com a atual esposa. Então, desiludido, rasgou seus sonhos e foi atrás de bicos variados, entre eles o de segurança. Foi trabalhando nisso, inclusive, que o presidente do Taboão da Serra o encontrou e aconselhou Sidão a insistir mais uma vez no sonho.

Em 2008, retornou ao futebol. Rodou mais um pouco pelos clubes do interior paulista e, em 2013, chegou ao Audax. Até 2016, foi reserva. Na oitava rodada do Paulistão daquele ano, o titular Felipe Alves se lesionou, e Sidão assumiu a meta para nunca mais largar até o vice-campeonato. Habilidoso com os pés, além de seguro na meta, o jogador se encaixou como uma — perdão da expressão — luva na formação inovadora do então técnico Fernando Diniz, hoje no Fluminense. Após a vitória sobre o Corinthians, na semifinal, Sidão deu uma entrevista pós-jogo emocionante, recapitulando suas batalhas na vida e seu orgulho em chegar onde chegou.

Ainda em 2016, foi emprestado ao Botafogo para o Campeonato Brasileiro, e teve ótima passagem. Chegou para ser o reserva do reserva, que seria titular temporariamente após a lesão e cirurgia do incontestável Jefferson. Mesmo assim, assumiu a meta e colecionou defesas difíceis, pênaltis salvos e quase fez um gol de bicicleta. Em 2017, assinou com o São Paulo, e aí começou o inferno profissional de Sidão.

Durante o ano de 2017, Sidão teve um ano de altos e baixos pelo Tricolor. Terminou com o reconhecimento de alguns, e o desgosto de outros na torcida. Em 2018, porém, Sidão colecionou atuações ruins e caiu diversas vezes na reserva do clube, inclusive sendo oferecido para diversos clubes durante o curso do ano. Em 2019, assinou pelo Goiás, teve bons jogos, mas mais uma vez caiu de rendimento e foi emprestado ao Vasco da Gama.

O que nos leva ao jogo do dia 12 de Maio. E o quão pouco tudo o que foi citado acima importa. De nada importa ser trabalhador, ir treinar todo dia, colocar sua imagem em risco perante milhares de pessoas duas vezes por semana, ver e ouvir os piores lados da humanidade na derrota com seus próprios olhos e ouvido, de nada importa apostar em um sonho para sobreviver, para sair da lama, para não morrer no acostamento da rua. Não. Só o resultado importa.

A mídia transformou Britney Spears, durante seus surtos mentais, em chacota. Não foi a única, mas foi um caso notório que sempre vem à mente os abusos com pessoas públicas.

Com Sidão, não seria diferente. E não será com o próximo.

Temos muito o que evoluir como sociedade.

*até o momento da publicação deste texto, o Desimpedidos não se manifestou sobre o ocorrido. É esperado que um pedido de desculpas seja feito em breve

“Em fevereiro, ‘Globo Esporte’ mostrou luta de Sidão a contra depressão no início da carreira”http://folhanobre.com.br/2019/05/13/em-fevereiro-globo-esporte-mostrou-luta-de-sidao-a-contra-depressao-no-inicio-da-carreira-veja-reportagem/254227

“Globo humilha Sidão, goleiro que se envolveu com drogas e depressão”https://esportes.r7.com/prisma/cosme-rimoli/globo-humilha-sidao-goleiro-que-se-envolveu-com-drogas-e-depressao-13052019

“Sidão lembra da mãe, se emociona e diz que atuação pelo Vasco foi a pior da sua vida”https://www.foxsports.com.br/news/407539-sidao-lembra-da-mae-se-emociona-e-diz-que-atuacao-pelo-vasco-foi-a-pior-da-sua-vida

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Written by Victor C

autoridade em dragon ball, lenda do football manager, jornalista frustrado, ativista de saúde mental, modelo & atriz. escrevo mais quando tô triste.

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